segunda-feira, 16 de março de 2015

Déjà vu


Você já teve aquela estranha sensação de déjà vu?  Se sim, multiplique essa sensação por mil. Foi mais ou menos o que senti naquele dia estranho, o mais estranho de toda a minha vida.
Era quarta-feira, a semana estava sendo bem puxada na Universidade, muitos textos para ler e as provas se aproximando. David, meu namorado, também estava bem ocupado pelo mesmo motivo.
Fui deitar bem cansada, com o livro de Estatística ao meu lado, e pensado “Eu devia ter resolvido a lista mais cedo, se desse pra voltar no tempo...”. E assim adormeci, para um daqueles sonos sem sonho, que parecem durar poucos segundos.
Acordei com o despertador do celular tocando. Mas não era a música que eu costumava usar, nem aquele era o meu celular. Bom, pelo menos desde o ano passado. 
-Marina – minha mãe chamou – Não vá se atrasar para o primeiro dia na Universidade!
Oi??? Primeiro dia!? Eu estava no quarto semestre! Olhei a data no celular e pensei se tratar de uma brincadeira: 22 de Ago 2013. Liguei a TV e a previsão do tempo era para o dia 22 de Agosto.  Liguei o rádio e até a previsão de astrologia dizia essa data. Tentei ligar para David, mas seu número não estava entre meus contatos. Ele não estava nem entre meus amigos na rede social. Era um sonho, só podia ser! Não fazia o menor sentido eu acordar em 2013!
Respirei fundo e tentei acordar. Tentei acelerar o tempo, já que aquele devia ser um sonho lúcido. Mas nada deu certo. Decidi então “entrar na brincadeira”. Arrumei-me e fui para a Universidade. Chegando lá, tomei o caminho do Auditório do Centro de Ciências Agrárias (CCA), onde o pró-reitor de graduação receberia os calouros daquele Centro.
No caminho, vi uma agitação em um dos blocos e imediatamente recordei o que acontecera naquele dia: um traficante da comunidade fizera alunos e servidores reféns no bloco de Agronomia, que estava em reforma. Lembrei que David fora um dos alunos rendidos e, sem pensar em mais nada, corri até lá. Eu estava desarmada e não tinha um plano. Mas era um sonho, eu não iria me ferir. E se por algum motivo estranho não fosse um sonho, David precisava de ajuda.
Vários alunos transitavam por ali, sem sequer ter ideia do risco que corriam. Entrei no bloco, tentando não parecer aflita e procurei a sala 05. A parede da sala parecia que cairia a qualquer momento e havia algumas ferramentas no corredor, pelo visto aqueles trabalhadores também foram rendidos. Olhei pela fechadura e vi oito pessoas encolhidas no meio da sala, das quais duas eu conhecia: David e Lucia – meu namorado e minha amiga.
Em seguida, vi um vulto se movimentar perto da porta – e da parede bamba. O traficante. Olhei em volta e vi uma marreta; parecia pesada, mas eu teria que conseguir. Alonguei os braços e peguei a ferramenta com alguma dificuldade, reuni toda a minha força e arremessei o objeto pesado na parede. Por um instante, me senti o deus nórdico do trovão.
Um bloco de tijolos caiu para dentro da sala, levantando uma nuvem de poeira e me escondi por trás de uma coluna. Esperei alguns segundos antes de olhar, meu coração estava muito acelerado, as batidas pareciam marteladas. Por fim criei coragem e lancei um olhar furtivo ao buraco que eu acabara de abrir. Vi as oito pessoas saindo, as primeiras olhavam pelo buraco na parede, outras procuravam em volta quem fizera o estrago.
Respirei fundo e me juntei a eles. O que vi dentro da sala fez meu coração disparar novamente: um homem estava caído, com o bloco de tijolos sobre ele e algum sangue em volta, o revólver caído perto da sua mão.
-Eu o matei? – consegui sussurrar.
-Não sei – David respondeu, ouvir sua voz diminuiu minha tensão, mas então outro som me preocupava. Uma rachadura crescia a partir do buraco aberto pela marreta e ameaçava derrubar o restante da parede.
-Não podemos ficar para descobrir – falei – venham, temos que sair rápido.
Enquanto saíamos às pressas, vi os guardas da Universidade se aproximando, eu sabia que haveria consequências para o que eu havia feito. Mesmo ajudando aquelas pessoas, eu havia ferido alguém e talvez até o tivesse matado!  David, Lucia e um servidor também os viram e devem ter pensado o mesmo que eu.
-Vocês três vão por ali – o servidor falou – nós explicaremos tudo para os guardas.
Corri dali com os dois, passando por entre as árvores do campus, até chegarmos ao Auditório do CCA e lá nos misturamos à multidão de calouros. Não prestei atenção ao discurso de boas vindas do pró-reitor ou dos professores, meu coração ainda estava acelerado, a adrenalina ainda na minha corrente sanguínea.
Após a recepção, os calouros foram conduzidos aos seus respectivos departamentos. Olhei em volta na esperança de ver David, esse dia já tinha extrapolado o limite do estranho, tudo o que eu queria era abraçá-lo. Mas não o vi. Vi apenas Lúcia e outros colegas de turma.  Passei a manhã toda pensando numa forma de acordar ou voltar para 2015 mas, se não era um sonho, eu não sabia nem como fora parar ali.
Eram quase duas da tarde e eu já antecipara a fala de três pessoas, quando e qual seria o trote, evitado que um amigo derramasse café e se queimasse e recebido o apelido de mãe Dináh. Eu só queria que isso acabasse logo, nem me importaria de fazer duas provas no mesmo dia, contanto que tudo voltasse ao normal.
Caminhei pelo campus pensando nisso, mal prestei atenção ao que meu amigo Carlos falava. Quando nos conhecemos – pela primeira vez – eu prestei bastante atenção, mesmo sendo aquela conversinha mole. Entramos em um dos blocos para cortar caminho, passamos por um longo corredor repleto de salas, das quais muitas estavam com a porta aberta, mas apenas uma chamou minha atenção.
Havia em torno de vinte pessoas concentradas em seus computadores e, lá no meio, o rosto conhecido pelo qual eu procurara boa parte do dia. Pensei um pouco até encontrar a desculpa perfeita para falar com ele. Eu não podia simplesmente chegar e dizer “oi David, sou sua namorada, vim do futuro, a gente só iria se conhecer ano que vem”. Ele pensaria que eu havia fumado alguma coisa.
A resposta veio após alguns segundos. Falei para Carlos que a gente se via depois e entrei na sala. Caminhei até o rapaz de óculos, estacionei à sua esquerda e esbocei um sorriso tímido, ele me olhou e sorriu.
-David, eu... – falei baixinho, me contendo para não abraçá-lo – só queria agradecer por você ter me ajudado mais cedo com os guardas...
                Eu sei, foi uma desculpa boba, eu podia ter perguntado se ele estava bem. Mas as melhores ideias só vêm depois. Logo em seguida à minha fala sem jeito, beijei a bochecha dele.
- Por nada... – ele respondeu – Desculpe, ainda não sei seu nome.
-Marina
-Marina – ele saboreou cada sílaba do meu nome – Só acho que o beijo poderia ser mais à direita.
Por alguma razão fiquei corada com sua proposta e saí da sala apressada. Ele me seguiu pelo corredor.
-Marina, me desculpe – ele se apressou em falar – Não quis te ofender. Não sei o que me deu, não é algo que eu diria assim de cara.
Parei e me virei para ele, olhei seus olhos castanhos por trás das lentes. Realmente, aquele não era seu estilo. David parecia nervoso e eu estava cansada de toda aquela loucura. Era difícil resistir com ele me olhando daquela forma. Por mais que ele não me conhecesse, eu o conhecia, lembrava-me da nossa história, do nosso amor.  
Meu coração ficou apertado e me lancei em seus braços, beijando-o nos lábios. Senti-me aliviada quando ele correspondeu. Desejei ardentemente que ele tivesse acesso às minhas memórias, que soubesse quem sou e o que somos um para o outro. Desejei estar de volta ao tempo que pertenço.
Quando nos afastamos, fiquei surpresa ao ver que estava de volta à parada de ônibus que David me deixara na quarta-feira à noite. Não cabia em mim de tanta felicidade.  Abracei meu namorado e o enchi de beijos.
-Quanta animação – ele riu.
-Só estou feliz – respondi com um sorriso largo

O que quer que tenha sido essa “volta no tempo”, eu estava realmente feliz que tivesse acabado. E, por precaução, não pediria mais para voltar no tempo. Nunca mais.

A vida de Sangue&Alma